A CRÔNICA DO PASCHOALINO – “O DEDO DE DEUS”

Abaixo, a crônica do amigo Paschoalino S. Azords, que vai ser publicada no jornal O Debate, de Santa Cruz do Rio Pardo, edição do próximo domingo. Boa leitura!

O dedo de Deus 

Saio pra fora. Prefiro ser assim redundante a permanecer na sala onde os crentes discutem se, afinal, tsunami é coisa de Deus, ou o que nos pode acontecer se ciência e religião não fizerem as pazes.

O crente graduado fala em voz alta, é do ofício. Tenta tirar Deus da reta e isso me faz recordar alguns épicos do cinema americano. Não de Charlton Heston, que em apenas duas décadas passou de Moisés, em Os Dez Mandamentos, a astronauta da Nasa no Planeta dos Macacos. Penso na bomba atômica de enxofre com que Deus purificou Sodoma e Gomorra. Penso nas dez pragas lançadas sobre o Egito, com direito a chuva de gafanhotos e rãs, e as águas do Rio Nilo virando chouriço, e a morte do primogênito de cada lar – onde não tinha filho, Deus se contentava com a morte de um animal domesticado: um gato, um cabrito, etc. Penso no tataravô dos tsunamis, a chuvarada em que se afogou a humanidade, da qual só sobreviveu o precavido Noé e alguns animaizinhos, recolhidos de dois em dois na Arca, que haveriam de repovoar o planeta e um dia acabar nas paradas de sucesso na voz do Padre Marcelo.

No destino de todos, dos afogados e dos bem aventurados, das pulgas e das moças, das crianças e das maritacas, em tudo, o dedo de Deus. As digitais do Criador foram vistas no ano de 1755, na destruição de Lisboa, “porque a Inquisição ali não funcionava com dureza”, segundo os jesuítas. Em 1906, os protestantes americanos entenderam o terremoto que destruiu San Francisco como castigo divino pela promiscuidade que, desde aqueles tempos, fazia a fama da cidade atraindo para lá gays, lésbicas e simpatizantes. No ano passado, o cônsul do Haiti no Brasil afirmou que o terremoto que matou mais de 230 mil pessoas na capital do seu país era “decorrência da macumba”. 95% da população do Haiti descendem de africanos e, certamente, não comungam da mesma fé do branco, gordo e bem empregado sir. George Samuel Antoine.

Aqui da varanda eu ouço a cidade latir. Prefiro a cachorrada insone e esse cheiro de carrapato que emana da vizinhança do que ouvir o diálogo entre a ciência e a fé. “Se pela fé descobrimos a origem e a finalidade do Universo e da vida” – deixa eu ler de novo para ver se entendo o que diz o crente – “se pela fé descobrimos a origem e a finalidade do Universo e da vida”, por que passar a vida enfurnado num laboratório sem janelas e de tão poucos horizontes? Por que uma boa alma não presenteia Stephen Hawking com a obra completa do Frei Beto? Caberia até um cartãozinho para o santo remetente escrever uma dedicatória: “Caro Hawking, pra você não desperdiçar o seu precioso tempo aí em Cambridge e deixar de ser besta. Três abraços, ou, saudações rubro-negras”.

Stephen Hawking, eu e o hipotético ascensorista do prédio torto de Ourinhos seríamos eternamente gratos por descobrir a origem, a finalidade do Universo e da vida. Até porque, além dessa tríplice equação, o que mais interessa? O sistema reprodutivo dos cavalos marinhos? Como o Paulo Coelho consegue vender tantos livros? A lógica do preço dos combustíveis no Brasil? O nome do responsável pelo trânsito de Ourinhos?

Aqui do fundo do quintal eu vejo a Lua, aonde a fé não tinha nos levado nesses seis ou sete milênios que a Bíblia interpõe entre o presente cotidiano e Adão com sua costela reprodutiva. Sento-me numa cadeira esquisita que comprei em São Pedro do Turvo e me entrego de corpo e alma ao banquete dos pernilongos – se não coçasse tanto, eu me esquecia até do repelente.

A cadeira é velha, a cidade late, mas eu me aquietaria se nessa noite a fé me contasse, não a origem e a finalidade do Universo e da vida, mas uma simples história da Lua apenas. Não a chata e previsível história arqueológica da Lua com seus oceanos de areia e esquecimento. Eu me tranqüilizaria se nesta noite a fé me contasse uma historinha, simples, curtinha, e que antes de dormir eu tivesse compreendido porque é que a Lua cresce e desaparece no céu, porque ela arremeda tanto as mulheres da rua, porque implica com as marés, com as colheitas, com os partos e até com os últimos cabelos da cabeça?

A cadeira que comprei em São Pedro é confortável. A porta dos fundos está fechada. Nada sei das últimas desgraças da TV. A Lua já escalou o muro do vizinho, mas ainda não consegui captar a resposta da fé.

2 comentários

  • Genésio

    Cardosinho, esse Pascoalino poupou o holocausto do Levítico. Deus exigia muito mais. Os animais imolados, quando gado, deviam ser machos e sem manchas. Nossos boiadeiros eram mais generosos, para sacrificar o boi-de-piranha escolhiam-no entre os mais velhos e mais fracos ou doentes. Era mais ecológico, mais econômico e mais humano. Penso eu.

  • Deve ter sido um esquecimento do Paschoalino, seo Genésio. Ele não pouparia o holocausto do Levítico de propósito. Esse fdp parece ser um ateu convicto. No mínimo, é um daqueles agnósticos que só acreditam em Deus quando estão com uma pneumonia ou algo parecido.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *