A CRÔNICA DO PASCHOALINO – “A VIDA É…”

Vejam que coincidência: depois de batucar as linhas do post anterior corri à minha caixa de e-mails e encontrei por lá – recém-saída do forno – a crônica do Paschoalino Sempre Azords, que vai ser publicada no domingo pelo jornal O Debate, de Santa Cruz do Rio Pardo. O Paschoalino, eu já disse por aqui, é um jalesense radicado lá perto do Paraná. E qual o assunto da crônica? Ninguém menos que o escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez, autor, entre outras obras primas, do livro “Crônica de Uma Morte Anunciada”. Vale a pena ler a crônica do Paschoalino. E você poderá fazê-lo clicando em

A vida é…

 (Para Maria Alice, que aprendeu com meu pai a se lembrar de tudo)

Gabriel Garcia Márquez, que deve lembrar-se dos mínimos detalhes até daquilo que não aconteceu, deu por encerrado o primeiro volume de suas memórias aos 74 anos de idade. Nas 474 páginas de Viver Para Contar podemos encontrar as cidades, as pessoas de verdade que, mais tarde, o leitor desavisado entendeu como delírio e a crítica especializada apelidou de realismo mágico. São os anos da inocência, entre a infância e a adolescência de quem um dia diria: “Meu avô morreu quando eu tinha oito anos de idade. Desde então, nada mais de interessante aconteceu na minha vida”.

Viver Para Contar relata a história pessoal do escritor até 1955, ano em que ele é enviado à Europa como correspondente do jornal El Espectador de Bogotá. Garcia Márquez tinha 27 anos, era magro, sorridente, quando deixou para trás a Colômbia, os amigos, e Mercedes, sua namorada para toda a vida. Ele não sabia, mas aquele avião também o levava para dias de fome e frio. Na sofisticada capital francesa ele logo compreendeu que para sobreviver não bastava escrever; era preciso se endividar com a dona da pensão, se prostituir e – por que não? – pedir esmolas nas iluminadas ruas de Paris. No auge do inverno, aquecia-se no vapor das grades do metrô.

Dois anos depois, até as letras da máquina de escrever de GGM começaram a escassear. Não está no livro, que só cobre até 1955, (nem no Google) mas o texto original de Ninguém Escreve ao Coronel foi dactilografado contra a vontade de algumas consoantes que se recusavam a colaborar com aquele escritor aprendiz que a polícia local insistia em confundir com mais um argelino.

Quando trocou a Colômbia por Paris, GGM também não suspeitava que vinte e dois anos depois, na Cidade do México, casado com Mercedes, pai de dois filhos, devendo a carne na carniceria, o aluguel e até as calças, ele colocaria seus avós no centro de um romance que, inicialmente, haveria de se chamar La Casa (a casa lunática onde ele viveu até os oito anos, onde tudo podia acontecer), lido no mundo inteiro desde 1967 sob um título que em 36 idiomas significa algo parecido com Cem Anos de Solidão – até os índios wayúu têm a sua própria tradução! 

Há uma anotação a lápis na contracapa do meu exemplar de Viver Para Contar: “plantão de 25 para 26 de outubro de 2004 – 7h15”. Eu não me lembrava desse detalhe, como, de resto, não me lembro de quase nada que li naquela noite. Faz sentido. Em que pese a impressão em corpo 11/16 escolhida pela gráfica, são quase vinte mãos (uma resma) de papel!

Mas, o que é mesmo que eu me lembro desse primeiro volume de memórias de Garcia Márquez? Das tantas farmácias que seu pai abriu e fechou nos lugarejos menos prováveis da Colômbia? Da primeira impressão causada pela distante capital, aonde GGM se desiludiu com o curso de Direito, mas conheceu A Metamorfose de Kafka? (“Em Bogotá caía uma chuvinha insone desde o começo do século XVI”) Das receitas extravagantes para tentar curar um ataque de soluços que os católicos achavam que poderia matar sua santidade o Papa Pio XII? Da viagem de barco e trem que fez com sua mãe para vender a casa de seus avós, quando viu então o nome Macondo na placa de uma estação perdida no meio de um bananal?

Pode parecer excentricidade, ou pura preguiça, mas o que me vem à mente quando penso em Viver Para Contar é a epígrafe escrita em duas linhas contra uma página em branco, antes da história de Garcia Márquez propriamente dita começar: “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”.

Mais do que todas as coisas que deixei de aprender lendo a obra de GGM, essa frase curta é, para mim, um dos achados da humanidade. Como aquela pomada feita da banha do peixe elétrico da Amazônia, ela serve para entender e apaziguar tudo: furúnculos, micoses e frieiras, febre alta, falta de memória, asma e hemorróidas – cura até viadagem.

Pode reparar: tudo, absolutamente tudo, não é o que pode ou deve ter sido, mas apenas aquilo que a gente recorda como foi. Um livro, um filme, uma canção… Um passeio de escuna ou de roda gigante, a feijoada do Alemão, o primeiro dia de aula do primeiro filho, as festas de formatura, os dias curtos de uma paixão, as febres, os piores governos…

Repara: tudo é apenas o que a gente recorda, e como recorda para contar. O grande problema aparece quando alguém lembra diferente e as nossas convicções começam a balançar, como o umbigo da menina gordinha da dança do ventre. Se não tiver um pau de sebo por perto pra se segurar…

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