A TRIBUNA: JUSTIÇA ARQUIVA INQUÉRITO SOBRE SUPOSTA PROPINA PAGA A PREFEITO DE BÁLSAMO QUE PODERIA RESPINGAR EM LUÍS HENRIQUE

No jornal A Tribuna deste final de semana, a principal manchete destaca o desempenho da Educação Municipal de Jales no Ideb de 2021. Segundo a matéria, a Secretaria Municipal de Educação recebeu na sexta-feira, 16, os resultados do Ideb 2021, divulgados pelo Ministério da Educação e, mais uma vez, Jales mostrou excelência no Ensino, superando as médias estadual (6,3) e nacional (5,8), além de se destacar entre os municípios da região. A nota total de 6,7 alcançada por Jales ficou à frente de cidades como Santa Fé do Sul (6,5), Fernandópolis (6,4), Votuporanga (6,2), Andradina (6,0) e Olímpia (6,3). 

Destaque, igualmente, para o concurso público aberto pelo Consórcio Intermunicipal de Saúde da Região de Jales – Consirj – para preenchimento de várias vagas em diversos cargos de todos os níveis de escolaridade, com vencimentos que vão de R$ 1,9 mil a R$ 3,9 mil. Há vagas para assistente social, auxiliar de serviços gerais, controlador de acesso ao público, enfermeiro padrão, escriturário, farmacêutico, motorista, psicólogo, técnico de enfermagem, técnico de farmácia, técnico de segurança do trabalho, telefonista e terapeuta ocupacional. As inscrições serão feitas exclusivamente via internet, no site www.consesp.com.br, até o dia 09 de outubro.

Na coluna Enfoque, informação dando conta de que sabujos do prefeito Luís Henrique comemoraram decisão da 13ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP, que arquivou um inquérito policial instaurado em Mirassol. O inquérito investigou denúncia de um vereador segundo a qual o prefeito de Bálsamo, Carlos Eduardo Lourenço, teria recebido propina de R$ 50 mil em cinco cheques de R$ 10 mil cada. Mas, por que os bajuladores do nosso prefeito estão comemorando? Porque os tais cheques da suposta propina foram parar – segundo o inquérito do setor de Combate ao Crime Organizado e Lavagem de Dinheiro da Polícia Civil – na conta de Luís Henrique, “amigo íntimo” do prefeito de Bálsamo. O arquivamento das investigações livra LH de eventuais dores de cabeça, daí as comemorações. 

2 comentários

  • Prestação de conta

    A justiça daqui pode falhar a de cima não!!!

  • sukodilaranja

    No momento em que tocam o cadeado da porteira, as mãos de Adriano de Araújo Leite ficam geladas. Ele aperta os olhos, segura as lágrimas. Entrar na Fazenda Cotia, nos rincões de Goiás, onde nasceu e cresceu, é sempre uma experiência amarga. Mas ele abre a porteira e começa a caminhar, devagar, pelo gramado. Aproxima-se do curral, já deteriorado pelo tempo, onde ele cuidou do gado da fazenda de sua família durante anos. Era o que lhe dava mais prazer. Depois, ele anda em direção à sede. É uma casa simples, em estilo colonial, erguida há mais de cem anos. Perto da porta principal, ele estanca, feito um boi arredio. Não tem forças para entrar no imóvel que sua família ocupou por três gerações. Adriano tem 45 anos, é esguio. Está usando boné, camiseta preta, calça jeans puída e botinas. Agora, nesse fim de tarde ensolarado de maio, ele está a poucos metros da porta da casa-sede, paralisado pela memória do dia 26 de novembro de 2009. Aconteceu no alvorecer.

    Naquele dia, mais de trinta policiais civis e militares cercaram a Cotia, enquanto um helicóptero da Polícia Civil, vindo de Goiânia, pousava próximo da sede da fazenda. Adriano e seu irmão caçula, Fernando, não estavam na casa naquele momento, mas logo foram presos em Alexânia, um município vizinho. Algemados, os dois, que nunca tinham posto os pés numa delegacia de polícia, passaram pela humilhação de ser levados para a cadeia de Corumbá de Goiás, a cidade mais próxima da fazenda, onde dormiram a primeira noite de suas vidas encarcerados. “Só Deus sabe o sofrimento que eu e meu irmão passamos naqueles dias”, diz Adriano.

    Daquela manhã de 2009 até maio passado, quando suas mãos gelaram ao abrir o cadeado da porteira, Adriano e sua família foram moídos por uma engrenagem de poder que começou a girar com um parlamentar, passou por uma delegada, por amigos influentes, depois por um promotor, até que chegou num juiz. Em cada giro da moenda que os triturou, Adriano e sua família foram perdendo um pouco aqui, outro pouco ali, até que perderam tudo: a casa, as terras, o gado, o dinheiro, os móveis, as camas, as roupas, as fotografias de família. Nesses treze anos, todos perderam a dignidade. Três perderam a liberdade. Dois perderam a vida.

    Em 2008, Eunício Lopes de Oliveira exercia seu terceiro mandato consecutivo como deputado federal pelo MDB do Ceará, ocupara poucos anos antes o cargo de ministro das Comunicações no primeiro governo de Lula e mantinha uma empresa de segurança privada, a Confederal Vigilância e Transporte de Valores, que se tornou muito conhecida em Brasília pelos contratos com o setor público, as suspeitas de formação de cartel e as denúncias de corrupção. Longe da capital federal, Eunício, como é conhecido, era um agropecuarista ambicioso, que vinha investindo pesado na construção de um latifúndio colossal, com o nome de Fazenda Santa Mônica, no município de Corumbá de Goiás. A 3 km dali ficava a modesta Fazenda Cotia, da família Leite.

    Desde a década de 1990, Eunício vinha comprando terras na região de Corumbá de Goiás. Quando um pequeno ruralista resistia a lhe vender suas terras, Eunício barganhava, pressionava, insistia e, em último caso, adotava uma tática de estrangulamento geográfico proibido por lei: comprava as terras do entorno e fechava o acesso à propriedade desejada, até que o dono, sem alternativa, se desfizesse do imóvel. A violência fundiária chegou a ser tema de um documentário, Passarim, produzido em 2003 por Camila Freitas, na época estudante de cinema na Universidade de Brasília (UnB). “Eles fazem raiva pra pessoa vender o que tem para eles”, diz um dos entrevistados.

    Eunício então se interessou pela Fazenda Cotia, com 136 hectares, mas a família Leite não quis fazer negócio. Interessou-se também pela Fazenda Barra da Congonha, de 187 hectares, que os Leite haviam herdado nos anos 1970. Eunício queria comprar as duas propriedades, totalizando 323 hectares. Mais uma vez, o chefe da família, Tito Leite, então com 72 anos e usando cadeira de rodas desde que sofrera um derrame dois anos antes, não quis vender as propriedades. “Naquela época, ele [Eunício] ia muito lá no sítio, surgia do nada, e insistia para que o meu pai vendesse as terras”, diz Marta, a única filha de Tito. “Mas meu pai nunca cogitou vender. Aquelas terras eram a vida dele e dos meus irmãos”, completa, referindo-se a Fábio e aos dois irmãos que foram presos em novembro de 2009, Adriano e Fernando.

    As coisas ficaram em banho-maria até que, no fim da tarde de 24 de setembro de 2009, Eunício entrou na delegacia de Corumbá de Goiás para prestar uma queixa. Recebido pela delegada Geinia Maria Etherna, informou que ficara ausente da Fazenda Santa Mônica por alguns meses, recuperando-se de uma cirurgia no aparelho urinário nos Estados Unidos, e constatou no seu retorno que parte do rebanho havia desaparecido. Eunício não soube precisar quantas cabeças faltavam. Disse apenas que, entre o gado sumido, havia 650 cabeças da raça Nelore, algumas com as marcas GR, e outras com a marca ELO, as iniciais de seu nome.

    Apesar da ausência prolongada e apesar de não ter ideia precisa de quantas cabeças de gado haviam desaparecido, Eunício já tinha dois suspeitos, conforme disse à delegada: José Ferreira de Souza e Álvaro Araújo, o Mano, ambos gerentes da Santa Mônica. Mano, além de gerente, tinha outras duas peculiaridades: era casado com Marta, a única filha de Tito Leite, e tinha sociedade com Eunício na propriedade de algumas cabeças de gado. Agora, Mano estava sendo acusado de dar um golpe no patrão e sócio. Em 29 de setembro, apenas cinco dias depois do registro da queixa, os policiais receberam autorização judicial para apreender o gado na fazenda dos Leite e cumpriram a operação. Recolheram 112 cabeças de gado Nelore.

    Fazia pouco, Mano, que também trabalhava na fazenda dos Leite, fora a um leilão de gado Nelore e comprara aquelas 112 cabeças, em sociedade com Eunício. Segundo Mano disse em depoimento à Polícia Civil, as 112 cabeças estavam no pasto dos Leite, que nunca criaram gado Nelore, apenas porque a fazenda tinha cochos mais altos, adequados àquele tipo de gado, denominado ‘de exposição’. O rebanho, porém, seria removido para a fazenda de Eunício, assim que os cochos da Santa Mônica fossem substituídos. Além de negar a acusação de furto, Mano disse que a fazenda de Eunício não tinha controle efetivo da quantidade de gado. Afirmou que sempre havia menos animais do que era oficialmente informado para a Agência Goiana de Defesa Agropecuária (Agrodefesa). Eunício, acrescentou Mano, muitas vezes fazia venda de gado sem emitir a guia de trânsito animal – uma prática ilegal, pois viola o rastreio do animal para fins sanitários. Eunício admitiu que Mano tinha autorização para comprar e vender gado em seu nome, mas seus advogados garantiram que aquelas 112 cabeças de gado eram exclusivamente da Santa Mônica.

    (Pouco depois, Mano viu-se enredado numa situação perfeitamente kafkiana. Numa instância da Justiça, ele passou a ser acusado de furtar as 112 cabeças de gado. Em outra, virou réu em ações de cobrança por supostamente não ter feito o pagamento de uma parte das 112 reses.)

    Para garantir um desfecho favorável, Eunício recorreu à ajuda de um amigo e colega de Congresso Nacional, o então senador Marconi Perillo, do PSDB, que mais tarde voltaria a ser governador de Goiás. Segundo policiais que atuaram no caso, Perillo acionou o então governador Alcides Rodrigues (PP), com quem tinha bom trânsito, pedindo para tratar o caso de Eunício com carinho. O governo destacou uma equipe de policiais civis de Goiânia especialmente para apurar o caso. A equipe, composta por uns cinco policiais, passou a receber uma “ajuda de custo”, nas palavras de um policial que atuou no inquérito e que pede para ficar no anonimato por temer retaliações. A “ajuda de custo” consistia em disponibilizar veículos da fazenda e, de vez em quando, vinha na forma de jantares na sede da Santa Mônica. (Meses depois, um dos policiais civis tornou-se segurança da fazenda de Eunício.)

    Com esse apoio na retaguarda, Eunício tomou uma providência no início da tarde do feriado de 15 de novembro, quase dois meses depois do registro do boletim de ocorrência: mandou chamar José Ferreira de Souza, um dos gerentes sob suspeita, para uma conversa na sede da Santa Mônica. Ao chegar, Souza encontrou o patrão ao lado de quatro policiais da equipe designada pelo governador, três deles armados com espingardas. Souza foi levado para uma sala, onde ficou na presença de dois homens: um desarmado, que se apresentava como delegado, e outro, um policial armado, que caminhava de um lado para o outro do cômodo. Ali, Souza foi interrogado durante cinco horas, segundo ele contou depois à Justiça. E repetiu o que já dissera à delegada Etherna: que não tinha envolvimento no suposto sumiço das reses da Santa Mônica e que Mano era o responsável pela compra e venda de gado na fazenda.

    Encerrado o interrogatório, Souza assinou os papéis que lhe apresentaram. Com pouca instrução formal, não tinha ideia do conteúdo, de acordo com sua advogada Andressa de Paiva Pelissari. Sem ler os papéis, assinou uma confissão e uma acusação contra Mano, seu colega de trabalho. O depoimento diz: “Que decidiu falar de livre e espontânea vontade toda a verdade sobre o sumiço de gado da Fazenda Santa Mônica. […] Que na verdade Mano vendeu muito gado escondido do patrão, e que começou a receber de Mano uma parte do dinheiro.” O cabeçalho do depoimento traz o nome da Delegacia Regional de Anápolis, e não da delegacia de Corumbá, um detalhe relevante que nunca foi explicado. O suposto dinheiro que Souza “começou a receber de Mano” nunca apareceu.

    Com base na “confissão” do gerente, a delegada Etherna – que usou, ao que tudo indica, o depoimento tomado por outra delegacia – argumentou que Mano “investiu pesado” na propriedade dos Leite, “construindo bangalôs às margens de uma vultosa represa”. (Os Leite afirmam que nunca houve bangalôs na fazenda. No inquérito, não há nenhum registro fotográfico de bangalôs.) Etherna conclui seu pedido ao juiz com uma frase peremptória: “Não se trata apenas de suspeitas, mas sim de fortes indícios de que o imóvel citado [a Fazenda Cotia] foi adquirido e transformado com a venda das milhares de reses subtraídas da fazenda da vítima [Eunício].” Procurada pela piauí, ela não quis se manifestar.

    Em poucas horas, o pedido de Etherna estava nas mãos do juiz titular de Corumbá de Goiás, Levine Raja Gabaglia Artiaga. Começava uma saga.

    Eunício escolhera a dedo o advogado para representá-lo naquilo que sua defesa denominou como o “maior furto de gado da América Latina”: Marcus Vinícius de Camargo Figueiredo, amigo e antigo sócio do juiz Levine Artiaga num escritório de advocacia em Brasília, no início dos anos 2000. À piauí, Figueiredo negou a amizade e até mesmo a sociedade com Artiaga, ainda que essa última informação conste no currículo do magistrado disponível no LinkedIn e tenha sido confirmada por um amigo de ambos.

    Primogênito de um casal de médicos, Levine Artiaga estudou em bons colégios de Goiânia, onde nasceu e cresceu. Cursou direito na Universidade de Brasília e, em 2002, passou a dividir seu tempo entre a advocacia privada e cargos comissionados no governo de Goiás, na primeira passagem de Marconi Perillo como governador. Em setembro de 2005, tornou-se juiz de primeira instância. Depois de peregrinar por pequenas comarcas do interior, foi nomeado juiz titular em Corumbá de Goiás, em 2008. Coincidiu que o promotor Fabiano de Souza Naves, formado em direito pela Universidade Católica de Goiás (atual PUC) em Goiânia, também fora transferido para Corumbá de Goiás na mesma época. Como nem ele nem o juiz tinham imóvel na cidade, os dois decidiram dividir uma casa cedida pela prefeitura. Ficaram conhecidos em Corumbá pela animação das festas que promoviam no imóvel.

    Assim que Artiaga assumiu seu posto, Eunício pediu para ser apresentado ao novo juiz por um amigo comum: o então senador Perillo. Em conversa com a piauí, dois funcionários do fórum de Corumbá, que pediram para não ser identificados a fim de evitar prejuízos às suas carreiras, disseram que o então deputado passou a enviar caixas de uísque para o gabinete do magistrado, que retribuía o agrado. A maior recompensa deu-se no dia 23 de novembro de 2009, quando Artiaga recebeu o pedido formulado pela delegada Etherna e mandou prender todo mundo: o próprio Souza, Mano e os irmãos Adriano e Fernando. O juiz incluiu os dois irmãos porque, conforme escreveu, “várias testemunhas receberam ‘presentes’ para não denunciar” a dupla. Essa informação, no entanto, é um mistério: não há nenhuma menção a coação ou suborno de testemunhas em todo o inquérito policial.

    Artiaga, na sua sentença, também escreveu que “as alegações formuladas pelo autor [Eunício] são verossímeis e bastante plausíveis”. Naquela altura, Eunício não tinha entregado à polícia nenhuma prova material do alegado furto do gado. Atendendo ao pedido da Polícia Civil, o juiz também mandou quebrar o sigilo bancário e fiscal de Mano, de Souza e de todos os membros da família Leite. (Nenhuma movimentação financeira suspeita foi encontrada em quaisquer contas.) Mas Artiaga foi além: mandou sequestrar a Fazenda Cotia da família Leite e entregá-la para a administração de Eunício, embora nem a delegada nem o Ministério Público tivessem feito tal pedido. Não é ilegal que um magistrado tome decisões além ou aquém do que a autoridade policial requer, mas é incomum.

    Sua ordem foi cumprida naquela manhã de 26 de novembro de 2009, quando mais de trinta policiais e um helicóptero baixaram na Fazenda Cotia. Apenas 63 dias depois de prestar queixa de roubo de gado na delegacia, a fazenda que Eunício tentava comprar havia mais de um ano estava enfim em suas mãos. Melhor: sem desembolsar um tostão. Souza fugiu antes da chegada dos policiais. Mano e os irmãos Adriano e Fernando foram levados para a delegacia de Corumbá. Os irmãos só deixaram a cadeia cinco dias depois. Mano ficou detido por quatro meses. Souza só reapareceu quando o decreto de prisão temporária não estava mais em vigor.

    Pouco depois, a pedido de Marcus Vinícius Figueiredo, advogado de Eunício, o juiz também decretou a prisão de Fábio, o mais velho dos filhos de Tito. O advogado alegou que Fábio vinha “se desvencilhando dos bens objetos de furto, documentos e demais elementos de prova”. Embora Figueiredo não tenha apresentado nenhuma evidência de que Fábio estava atrapalhando as investigações – que, naquela altura, já estavam concluídas –, Artiaga mandou prendê-lo. Pela lei, um juiz deve declarar-se impedido de julgar uma causa patrocinada por um advogado amigo e ex-sócio. Artiaga não fez isso. “Se o juiz não toma essa atitude, o processo é nulo”, diz uma juíza do Tribunal de Justiça de São Paulo que pediu anonimato para não se envolver num caso do qual não faz parte.

    Fábio só não dormiu na cadeia porque, aconselhado pela família, deixou a região. “Quando percebemos o alcance daquilo tudo, eu disse para o meu irmão sumir por uns tempos. Ele só retornou quando venceu o período de cinco dias da prisão temporária”, diz Marta. A investigação contra Fábio acabou arquivada.

    Ooficial de Justiça que cumpriu o sequestro da fazenda e os mandados de prisão não produziu nenhum relatório sobre os bens que estavam na Fazenda Cotia naquele 26 de novembro. Por isso, nem os Leite sabem ao certo o que perderam com a decisão de Artiaga. Nos cálculos da família, havia nas duas fazendas e em alguns pastos arrendados (cujos animais também foram entregues a Eunício) cerca de 1,1 mil cabeças de gado. O tamanho do rebanho – seja o que pertencia aos Leite, seja o que Eunício alega ter sido roubado – é uma informação vital no processo. No entanto, ela não existe.

    Ou melhor: existe, mas varia ao sabor dos ventos dentro do inquérito – e nunca vem acompanhada de prova documental. Em 15 de dezembro de 2009, o juiz Artiaga informou que eram 9 mil cabeças de gado. Em 13 de janeiro de 2010, em outro documento, o mesmo juiz disse que eram 14 mil. Em denúncia redigida uma semana depois, a promotoria disse que totalizavam 15,6 mil cabeças de gado. Mais tarde, em outro documento, Artiaga tirou um novo número da cartola: 16 303 reses. (Para tirar um rebanho desse tamanho de uma fazenda, é necessário lotar um caminhão – e repetir a operação 815 vezes.)

    Os dados oficiais da Agrodefesa, o órgão de fiscalização agropecuária do estado, tampouco ajudam. Em novembro de 2007, informam que havia 9 021 reses na Santa Mônica. Cinco meses depois, o número salta para 19 411, embora não haja nenhum documento da compra na ação penal. Treze dias depois desse registro, a Agrodefesa informou que o número caiu para 8 981 sem que, novamente, haja notas fiscais ou guias de transporte animal comprovando a queda. Um ano depois, o rebanho sobe para 29,3 mil cabeças e, outra vez, não há nenhum documento para comprovar o aumento. (No decorrer do processo, Artiaga negou os pedidos da família Leite para fazer uma perícia contábil nos documentos da Santa Mônica para tentar descobrir o tamanho do rebanho.)

    No dia 26 de setembro de 2012, três anos depois que Eunício prestou queixa na delegacia, o juiz Artiaga deu sua sentença final. Disse que havia “materialidade do crime”.

    A primeira “prova material” baseava-se numa perícia em 296 animais apreendidos em pastos arrendados pela família Leite. Entre esses 296 animais, a perícia encontrou 52 cabeças de gado Nelore com a marca ELO, usada por Eunício. O juiz considerou que o achado da perícia era uma prova contra os Leite, mas tudo indica que esses 52 bois também não foram furtados. O dono das terras onde os animais foram encontrados – terras que os Leite arrendavam – disse à polícia que as 52 cabeças eram suas. Informou que havia comprado o pequeno rebanho de um corretor que negociava gado de Eunício. A versão, que isentava os Leite, não foi investigada no inquérito.

    A segunda “prova material” invocada pelo juiz são quatro cheques, assinados por Tito e Adriano, que foram apreendidos na sede da fazenda Cotia. Somados, totalizavam 100 mil reais. Para o magistrado, os cheques serviam como prova do crime, pois mostravam que a família estava lidando com bastante dinheiro. Em sua defesa, os Leite haviam dito que os quatro cheques eram pagamento da compra de bois. Ficou difícil entender por que 100 mil reais em quatro cheques poderiam ser a prova do roubo de um rebanho que o juiz, em seu último cálculo, estimou em 16 303 cabeças – o que, na época, valia em torno de 13 milhões de reais. (As 16 303 cabeças de gado jamais foram encontradas pela polícia.)

    Por fim, Artiaga condenou todos os réus por furto qualificado: Mano e Souza pegaram pena de prisão de dez anos e meio. Adriano, sete anos e meio. Tito, o pai, pegou quatro anos e três meses. Em relação a Fernando, o caso fora arquivado: na tarde do dia 17 de setembro de 2011, o caçula de Tito morreu de um infarto fulminante. Tinha 29 anos. Além disso, o juiz determinou que a posse definitiva das duas fazendas, Cotia e Barra da Congonha, fosse dada para Eunício. Uma perícia concluiu que as duas fazendas valiam, juntas, 3,3 milhões de reais. Foi uma vitória total do então senador.

    Os condenados recorreram ao Tribunal de Justiça de Goiás, cujo prédio, por coincidência, era atendido por uma empresa de segurança bastante conhecida: a velha Confederal, de propriedade de Eunício. O recurso foi julgado por três desembargadores da 2ª Câmara Criminal. Por unanimidade, absolveram Tito e reduziram as penas dos outros condenados. Mano ficou quatro meses na cadeia pública de Corumbá de Goiás até ter direito ao regime semiaberto. Souza e Adriano passaram a dormir na cadeia e sair durante o dia para trabalhar como peões em sítios da região, com renda de um salário mínimo. (Em agosto de 2019, com base em laudo médico que apontava graves danos psicológicos a Adriano, a Justiça permitiu que ele cumprisse o restante da pena em liberdade.)

    Eunício, porém, não ficou satisfeito. Ingressou com uma ação judicial contra os réus da ação penal pedindo indenização por danos materiais e morais – e ganhou. Em março de 2016, o mesmo juiz Artiaga condenou os quatro – Mano, Souza, Adriano e Tito – ao pagamento de 13 milhões de reais, correspondentes ao valor do rebanho supostamente furtado, mais 160 mil reais por danos morais. A decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça de Goiás.

    Eunício estava prestes a sofrer uma derrota, no entanto. Como Tito, o patriarca dos Leite que era dono das fazendas, acabou absolvido pelo Tribunal de Justiça, a corte determinou o fim do sequestro da Cotia e da Barra da Congonha no dia 14 de julho de 2017. Eunício só não perdeu porque, dois dias antes, o juiz Artiaga concedera nova liminar de sequestro das duas propriedades, agora na ação cível, na qual nomeava um fiel depositário – o próprio Eunício. A vitória de Eunício, porém, seria efêmera. No final daquele ano, o Tribunal de Justiça reverteu o sequestro da Barra da Congonha, retornando a propriedade para os Leite. Na época, Marta e Adriano levaram o pai, já muito debilitado, para uma conversa com o desembargador Gilberto Marques Filho, corregedor do Tribunal de Justiça em Goiânia, onde tramitava uma denúncia dos Leite contra Artiaga. “Excelência, posso te fazer um pedido? Deixa eu morrer no lugar onde eu nasci.”

    Não deu tempo. Tito sofreu um infarto fatal no dia 29 de abril de 2019. Mas Marta e Adriano continuaram a luta. Pouco mais de um ano depois da morte do pai, conseguiram uma liminar do Tribunal de Justiça reavendo a propriedade da Fazenda Cotia. “A Justiça tarda, mas ela vem”, disse no julgamento o desembargador Marques Filho, o mesmo a quem Tito pediu para morrer onde nasceu. “Pelo simples fato de ser vizinho [da Fazenda Santa Mônica] quiseram atribuir a ele [Tito] essa culpa”, completou o juiz.

    Marta demorou três meses para retirar todo o lixo acumulado na sede. A casa segue limpa, mas sem móveis. No pasto, nem sequer uma cabeça de gado: todas as 1,1 mil reses da família sumiram. “Não podemos mexer em nada aqui, porque nossa posse é baseada apenas em uma decisão provisória da Justiça. Amanhã podemos perder algum recurso na Justiça e tudo volta à estaca zero”, afirma ela. Mano, Marta, Souza e Adriano seguem com todos os bens bloqueados judicialmente.

    Os Leite ficaram onze anos sem poder pisar nas suas propriedades. “Perdemos tudo: nossas roupas, nossos móveis, as fotos da nossa família, incluindo da minha falecida mãe. Não pudemos recuperar nada. Nossa memória, nossa história de vida, acabou destruída pelos peões do Eunício”, diz Marta. Anos depois da expulsão dos Leite, uma imagem barroca de Nossa Senhora e Santa Ana, do século XIX, que decorava um pequeno altar em um dos cômodos da sede, foi encontrada por um vizinho, próxima a um córrego. Estava estraçalhada com marcas de tiros.

    Nascido numa família pobre do sertão do Ceará, Eunício Lopes de Oliveira ascendeu socialmente ao casar-se nos anos 1970 com Mônica, filha do então deputado federal Antônio Paes de Andrade, influente político do Ceará que chegou a presidir a Câmara dos Deputados. Levou mais de três décadas para construir seu latifúndio na região de Corumbá de Goiás, período em que ficou conhecido pela agressividade com que enfrenta quem cruza seu caminho. Comprou 149 propriedades que, ao longo do tempo, foi agregando à fazenda, cujo nome é uma homenagem à sua mulher. A Santa Mônica tem hoje 15 906 hectares, equivalente à Barra da Tijuca, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Seu valor é estimado em pelo menos 520 milhões de reais.

    No curso de tomar as fazendas da família Leite, policiais que atuaram no caso afirmaram à piauí que Eunício queria – e conseguiu – esquentar 13 milhões de reais, o valor que ele atribuiu às 16 303 cabeças de gado que jamais apareceram. Uma análise das guias de transporte animal que registram entrada e saída de gado da Santa Mônica revela que, entre 2018 e 2022, houve o ingresso de 1 186 animais e a saída de 10 722. Ou seja: para cada boi que entrou na fazenda, saíram dez. “Nesse caso é possível que tenha ocorrido emissão de guias sem a efetiva saída do animal para justificar o ingresso de dinheiro oriundo de outras fontes”, afirma Bernardo Antônio Machado Mota, presidente do Instituto de Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo (IPLD).

    Por e-mail, o advogado de Eunício, Marcus Vinícius Figueiredo, negou que o ex-senador tenha pressionado produtores rurais a venderem suas terras. “São boatos propagados por pessoas mal-intencionadas.” Disse desconhecer que o governo goiano tenha deslocado uma equipe para cuidar do suposto sumiço do gado e que a tomada de depoimento de Souza numa sala da Santa Mônica é fake news. Para o advogado, o furto do gado ficou devidamente provado na ação penal. Sobre as suspeitas de lavagem de dinheiro com gado, Figueiredo é enfático: “Tal afirmação, além de fantasiosa, é criminosa, não passando de fake news com fins políticos.” Indagado sobre a amizade de Eunício com o juiz Artiaga, disse desconhecer a proximidade entre os dois.

    Depois de exercer três mandatos de deputado federal e um de senador, Eunício perdeu a reeleição para o Senado em 2018, mas está tentando voltar ao Congresso Nacional. Neste pleito, é candidato a deputado federal, novamente pelo MDB do Ceará. Ao entregar sua declaração de bens à Justiça Eleitoral, como devem fazer todos os candidatos, Eunício informou que seu patrimônio é de 143,3 milhões de reais. Na declaração, não há um único boi da Santa Mônica.

    Eunício resolveu premiar o juiz Artiaga, que lhe dera sentenças tão favoráveis. Pediu ao senador Renan Calheiros (MDB-AL) que sugerisse a Francisco Falcão, então corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a indicação de Artiaga para o órgão. Renan Calheiros, muito próximo de Falcão, atendeu ao pedido. Cinco meses depois de prolatar a sentença que destruiu a família Leite, Artiaga ganhou um cargo no CNJ e passou a atuar em inspeções em tribunais de Justiça pelo país. Ficou apenas seis meses no posto. Marta, a filha de Tito que se formou em direito, enviou uma reclamação disciplinar contra Artiaga ao CNJ e outra contra o promotor Naves ao Conselho Nacional de Ministério Público. As duas reclamações foram arquivadas.

    Em outubro de 2021, no entanto, o passado bateu na porta de Artiaga. Ele foi aposentado compulsoriamente, sob acusação do Ministério Público de liderar uma quadrilha que fraudava processos de paternidade e desviava milhões de reais em heranças. Segundo o Gaeco, grupo de promotores de Goiás que investiga o crime organizado, o juiz recebeu 1,8 milhão de reais em propinas por meio de um pastor que operava como laranja no esquema. O dinheiro era transferido para planos de previdência privada e para uma conta do magistrado na Flórida, nos Estados Unidos. Em ação penal que tramita no Tribunal de Justiça de Goiás, Artiaga é acusado de peculato, corrupção passiva, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro. Nem ele nem o promotor Fabiano Naves quiseram falar com a piauí.

    Atualmente, o promotor é assessor jurídico da Procuradoria-Geral de Justiça em Goiânia. O ex-juiz Artiaga assessora a campanha eleitoral de Marconi Perillo ao Senado. Em maio último, Artiaga estava presente no casamento de uma das filhas de Eunício. Foi uma festa opulenta, para seiscentos convidados, realizada na sede da Fazenda Santa Mônica, um dos maiores latifúndios de Goiás.

    Allan de Abreu
    Repórter da piauí, é autor dos livros O Delator, Cocaína: A Rota Caipira e Cabeça Branca (Record)

Deixe um comentário para Prestação de conta Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *