A CRÔNICA DO PASCHOALINO – “DO OUTRO LADO DA CERCA”

Estou publicando, com ligeiro atraso, a crônica do Paschoalino S. Azords, que foi veiculada na edição de domingo passado do jornal O Debate, de Santa Cruz do Rio Pardo. Reparem que alguns personagens do Paschoalino, que viveu sua infância em Jales, são conhecidos nossos:

Do outro lado da cerca 

A sexta-feira estava quase acabando. Tinha caído uma chuvinha mansa e o sol talvez já tivesse combinado com a noite o resto daquele dia difícil que era a Sexta-Feira da Paixão. As oito, a Companhia cortaria a luz das ruas para a procissão do Senhor morto. “Aquela mulher que canta em outra língua é a Verônica, e aquele desenho carimbado na toalha que ela desenrola é o Santo Sudário”, minha mãe explicava, todo ano, antes de sairmos de casa. Ao invés de prestar atenção nesses detalhes, eu preferia juntar os tocos de vela largados no trajeto, mesmo sem saber o que fazer com aquilo tudo depois.

As quatro ou cinco da tarde, o dia seguia calmo na Rua Elizabete. Pela manhã, tínhamos cumprido com a nossa obrigação, beijando os pés do Jesus morto depois de uma hora de joelhos diante do ostensório, ainda que os santos não pudessem acompanhar a nossa penitência debaixo daqueles panos roxos. Dom Arthur dizia que os santos preferiam não ver a grande ignomínia que se repetiria pela 2.000ª vez na face da Terra. Dom Arthur Horsthuis foi o nosso primeiro bispo. Amigo pessoal do bom João XXIII, trazia na ponta da língua as Bulas Papais de Ereção da Diocese.

O resto da Sexta-Feira Santa tinha se arrastado como convinha: os carros e as charretes não buzinavam, os trens vinham e iam como as grandes paixões, em silêncio, sem apitar.

“O quaresma é o tempo de não fazer o que você mais gosta de fazer”, pregava o holandês Dom Arthur carregando nos erres o seu português de bolso. Os churrascos eram suspensos, religiosamente, por 40 dias. Os palavrões, adiados para depois da Páscoa. Mas não havia limites ou regras claras para quem desejasse ardentemente se preparar para a Via Crúcis. Uns não dançavam, outros não bebiam… Tinha gente que só fumava escondido, outros nem fumavam. E as estatísticas acusavam uma queda considerável nos índices de criminalidade, poupando, assim, o Governo de mentir em plena quaresma. Dona Fátima, uma velha portuguesa do fim da rua, falava que não tomava banho, não penteava o cabelo e… nem fazia filho – como se isso tudo somado fosse um sacrifício dela.

A Rádio Cultura tocava os seus discos de música clássica pensando que assim ajudava o ouvinte a guardar melhor o Defunto importante. Além da Sexta-Feira Maior, em menos de dois anos aqueles mesmos long plays tinham rodado dia e noite em duas datas solenemente triste para nós: quando Deus chamou João XXIII aos céus, e quando o fundador da cidade foi assassinado a tiros numa rua do centro de Rio Preto, de onde a sua alma tomou rumo incerto e ignorado.

Aquela sexta-feira já estava quase no fim. A vida quieta, parada, apesar da passarada que não respeita dia-santo-de-guarda. E então, dentro daquele silêncio todo eu pude ouvir os gritos, desde quando eles vieram gritando lá da rua de baixo e de um jeito que eu ainda não tinha ouvido gritar. Ainda chovia, agora me lembro, pois Dona Maria passou correndo descalça pela esquina de casa, enlouquecida, dentro de um vestido branco de florzinhas azuis de manacá, todo sujo de barro, com os cabelos soltos na chuva capciosa que não conseguia abafar os seus primeiros gritos de viúva.

O seu Ivan, um baiano que remendava sacos de estopa, tinha ido pescar no açude do Honório por conta do feriado. Foi com um cunhado e, como não pegavam nada, aproveitou para se refrescar naquela água estagnada de trairagem. O cunhado ainda correu pedir ajuda quando o baiano não voltou do mergulho. Correu a pé na direção da cidade que tinham deixado alguns quilômetros para trás.

Depois de cumprir com as obrigações de afogado, o corpo do seu Ivan chegou à residência numa viatura da polícia. Ao invés de quase negro, ele me pareceu azul naquela hora, de cueca de pano e com o cabelo ainda cheio de terra. À noitinha, o defunto já repousava sobre a mesa da cozinha, num caixão que tomava quase toda a sala. Não porque fosse avantajado de estatura, o morto, mas porque a sala da sua casa era quase um cisco. O pé direito econômico era compensado pela falta de forro e telhas vãs. As paredes eram pouco mais altas do que a porta, por onde se entrava e saía com a devida cautela.

Fazia tanto calor que me parecia que seu Ivan também transpirava, e o seu suor cheirava forte como o café que passavam no puxadinho de fora. Meu pai varou a madrugada e só deixou o velório para vir me acordar a tempo de ver o cometa anunciado para aquele Sábado de Aleluia. (Deve ser um costume lá de casa esse de querer mostrar aos outros as coisas perdidas do céu. Mas, naquela noite, eu ainda não sabia).

Uma cerca rala divisava a nossa casa da casa do seu Ivan. De tão rala, a cerca não segurava gente e nem os bichos de estimação. Com dona Maria, ele formava um casal sem filhos que, além das máquinas de costura, só possuía uma bicicleta Gallo e a juventude dos anos.

Como não sabia andar, dona Maria vendeu primeiro a bicicleta. Em seguida, foram as máquinas de remendar sacos. No primeiro aperto, ofereceu a metade de baixo do seu terreno para o meu pai pagar parcelado e como pudesse. E, quando todo mundo achava que a viúva tinha se casado com Jesus, ela engravidou! “O finado era estéril, dona Terezinha. E eu acostumei mal”, como contou à minha mãe.

Contra todos os preconceitos que podiam crescer numa rua de terra, dona Maria envergou sua barriguinha tímida debaixo de vestidinhos cada dia mais curtos. Magrinha e faladeira, sempre encontrou apoio e compreensão na nossa casa. Dona

Terezinha era a mãe experimentada dos meus muitos irmãos; e meu pai, o farmacêutico sempre pronto, a qualquer hora do dia ou da noite. Era natural que meus pais batizassem a pequena Vera Lúcia, livrando-a do pecado original alguns meses depois.

Quatro cômodos era demais para mãe e filha, tão miúdas, e, assim, a casa logo foi passada nos cobres. Dona Maria foi morar com a irmã, na rua de baixo, no Micena, onde as minas eram tão fortes que a água dispensava o sarilho para chegar à boca das cisternas.

O casal que chegou de mudança tinha uma criança de colo e uma menina no pé (da mãe), resultado de outro casamento. Cícero, o marido, era barbeiro e não tinha hora certa para chegar em casa. Assim, eu ia ficando por ali quando não tinha nada melhor para fazer na rua. Uma noite, a Ismênia resolveu dar de mama na salinha onde o seu Ivan tinha sido velado. Quando ela abriu a blusa, felizmente, eu já estava sentado. (Depois me disseram que era pecado olhar o peito que amamenta, mas naquele tempo, eu ainda não sabia. E, mesmo que soubesse, aquele era o peito de uma mulher no auge da sua capacidade produtiva!)

Eu, que não mamava há uns três ou quatro anos, continuei por ali conversando fiado e sobre tudo. Mas o assunto durou pouco. Súbito, a criança soltou o bico do peito e o leite veio dar na minha cara. Assustado, não fui capaz sequer de levar uma das mãos ao rosto para tentar diminuir o estrago.

Minutos e segundos, para mim, perderam a noção do tempo naquela casa. Se existisse um relógio, ali na sala, os ponteiros, por certos, estariam parados àquela hora. Sem as palavras, eu permanecia sentado, fazendo de conta que não tinha acontecido nada. Minha mãe não me chamava lá de casa, e o marido, que de corno só tinha o nome, também não chegava da barbearia para me salvar.

O leite ralo me escorria pela cara, mas eu não encontrava forças para, ao menos, ficar em pé. “Deve ser assim que se morre afogado”, eu pensei, entre outras besteiras. E o que doía mais era saber que a minha casa estava ali tão perto, do outro lado da cerca, e que já era tarde para um menino da minha idade voltar pra rua.

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