A CRÔNICA DO PASCHOALINO – “QUEBRANDO TUDO”

Eis a crônica do jalesense Pachoalino S. Azords, que foi publicada pelo jornal O Debate, de Santa Cruz do Rio Pardo, no domingo:

Quebrando tudo

 Leidiane é aluna regular de Recursos Humanos numa faculdade particular aqui da curva do rio. O curso é caro, mas Leidiane conseguiu uma bolsa e, “passe a passe, chegou ao último degral”, como se escreve no dialeto universitário. Além da conta salgada da lanchonete, ela paga, com um pouco de sacrifício, religiosa e mensalmente, as prestações da festa de formatura: missa, vestido da missa, baile, vestido de baile, flores, buffet, álbum de fotos e o DVD com as fotos para ver na sala quando não tiver mais desgraça pra passar na TV.

Para quem pensa que a vida de Leidiane é só alegria, sacolejando acima da velocidade permitida no ônibus que a leva e traz da faculdade, olha só o tema da sua dissertação final: “Quebrando Paradigmas”. Poxa, Leidiane não é padre, não é preletora, nem locutora de rádio para discorrer sobre qualquer assunto, assim, com autoridade.

Outro dia Leidiane me apareceu atrasada no serviço, com a maior cara de formanda que engravidou antes de colar grau: culpa da sua maldita dissertação. Os trabalhos da turma serão apresentados dentro de um mês em evento programado para acontecer no entorno da piscina de um hotel da cidade, “depois do coffee break, um pouquinho antes do almoço”, ela me explicou.

Solidário, vou e volto do café quebrando a cabeça. O máximo que consigo é botar a culpa no corpo docente. O que não falta nas nossas faculdades é professor veado querendo quebrar alguma coisa: paradigma, paraglider, parapente, perfume importado, o que tiver pela frente. Leidiane pondera dizendo que esse professor lhe parece hétero, embora também faça escova no cabelo e venha pro campus, sozinho, numa pick-up 4X4 que se confunde com um tanque de guerra.  

Volto do segundo café mais inspirado: “Leidiane, quebrar paradigma é como triplicar o salário mínimo sem quebrar o país, sem falar tantas línguas e nem estudar no exterior”. Minha amiga reagiu dizendo que não vota em mulher e que é contra o aborto.

Já estava me dando por imprestável quando, depois de um nono ou novo café, enchi a repartição com outra idéia: o telefone celular. “Veja bem, Leidiane, se desde o tempo dos filósofos gregos até os filmes do Michelangelo Antonioni, a incomunicabilidade foi tida como uma característica determinante da espécie humana; em menos de 20 anos o celular conseguiu provar o contrário: o homem precisa (e consegue) se comunicar o tempo todo e com todo mundo – no trânsito, no teatro, no restaurante, até no motel, mas, enfim, falando. Inclusive, os homenzinhos de 10 anos de idade!”.

Leidiane não aprovou a minha brilhante idéia, disse que não é politicamente correta. Vai na contra mão da liberdade de expressão e fere, frontalmente, o estatuto da criança e do adolescente.

Eu não imaginava que a minha idéia fosse assim tão infeliz, como Leidiane foi explicando. Ela não quer se indispor com quem telefona ao volante, botando a vida de terceiros em risco por não conseguir parar de dizer (ou ouvir) bobagens ou, de vez em quando, coisas importantes – mas, o que pode ser mais importante do que a vida? Não quer se indispor com os chatos, e não são poucos, que acham que o pedido para se desligar os aparelhos sonoros num teatro vale para toda a platéia – menos pra ele, o chato. Não quer se indispor com aqueles que temperam as demais mesas do restaurante com os seus assuntos particulares, compridos e reticentes – chato filho daquele velho chato que acendia um charuto mata-rato assim que pedia a conta ao garçom. Não quer se indispor com a esmagadora juventude precoce e, muito menos, com os pais que arcam com a conta dos telefones celulares da família. E mais não falou porque Leidiane é mulher direita: nada sabe de motéis, assim como o senhor seu marido.           

Na verdade, acho que Leidiane está mais preocupada é com o tal do coffee break. Serão muitos sucos, uma variedade de frios e geléias, coalhadas e chás, salsichas e ovos mexidos, frutas de época, bolos, tortas, mini croissants e (se uma grande cafeeira local topar patrocinar) pode rolar até um cafezinho no encerramento do tal coffee break.

Eu não tenho nada com isso e, se preciso, renego três vezes uma certa Leidiane antes do galo cantar. Quebrar paradigma, pra que? Não conheço, nunca vi. Com tanta coisa mais simples pedindo pra quebrar?

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