LUIZ CARLOS SEIXAS, SOBRE O DIA EM QUE VINÍCIUS ESTEVE EM JALES: “COMO EU LEMBRO AINDA”.

vinícius de moraes2Em outubro do ano passado, quando comemorou-se os cem anos do nascimento  de Vinícius de Moraes, escrevi matéria para o jornal A Tribuna sobre a vinda do poetinha a Jales.

Foi em 1972. Vinícius, Toquinho,  a cantora Marília Medaglia e o Trio Mocotó lotaram o Cine Jales. Uma das pessoas que viram o show foi o meu amigo Maurício Gomes Batista, morando  atualmente em Jundiaí.

Maurício era integrante do Diretório Acadêmico da nossa Faculdade e coube a ele assinar o contrato do famoso show. Ele conta, também, que foi um presente do médico Eduardo Ferraz o litro de Old Parr consumido por Vinícius durante o show.

“Ao final, quando os artistas viraram as costas, um cidadão desconhecido saiu correndo, deu um salto em cima do palco e levou embora o litro com a sobra da bebida embaixo da camisa”, me disse o Maurício.

seixas e glauberUm outro amigo, então com 13 anos de idade, também esteve no show: Luiz Carlos Seixas, que mora em Ourinhos há alguns anos. O Seixas, a meu pedido, escreveu um texto sobre a passagem de Vinícius por Jales.

Entre outras coisas, o Seixas – que aparece aí do lado, com o filho Glauber – conta que foi durante esse show que ele decidiu aprender a tocar violão. Dois ou três anos depois, o Seixas já vencia festivais de música. Vale a pena ler o que o ele  escreveu:

Como eu lembro ainda…

“Olha que coisa, Toquinho. Agora mesmo, no camarim, um menino me disse que começou a tocar violão por causa do show que nós fizemos lá na cidade dele”. Assim Vinícius de Moraes começou o seu improviso daquela noite no TUCA. A sua conversa nunca era a mesma entre as músicas: variava a cada show dependendo da plateia, do estado do seu fígado ou do noticiário político. Como na noite em que lhe contei, também no camarim, que a ditadura Pinochet tinha prendido a viúva de Pablo Neruda, e ele, Vinícius, pediu ao público durante o show um minuto de silêncio como forma de protesto. Parece um tanto inocente, mas o que mais podia fazer um poeta, desarmado, a mais de 3 mil quilômetros de tal fato?

Vinícius tinha boas recordações daqueles 1.001 shows que fizera pelo Brasil afora, o chamado circuito universitário. Ele se lembrava das churrascarias de beira de estrada, quase sempre às moscas; das risíveis condições técnicas das apresentações em ginásios de esportes e cinemas (que naquela época ainda não tinham se convertido em igrejas); da poeira de nossas estradas, ainda não pavimentadas nem pedagiadas.

Naquele outono de 1979, Toquinho e Vinícius comemoravam 10 anos de parceria no histórico palco do teatro da PUC, de quarta a domingo, na capital paulista. Dispensado de pagar ingresso, por conta de minha amizade com o baterista/compositor Mutinho, eu comparecia quase todas as noites. Quando eu lhe falei do show de Jales, Vinícius de Moraes se lembrou da casa onde estiveram hospedados. “Lembra, Toquinho, aquela casa bonita, daquele médico nordestino?”. Não, Toquinho não se lembrava.

Nós ficamos sabendo que Toquinho e Vinícius chegariam à nossa cidade horas antes da apresentação no palco do Cine Jales. Muito ansioso, logo depois do almoço eu me plantei na calçada da avenida, em frente a Faficle. No fim da tarde eles chegaram. É curioso observar que já eram nossos ídolos tendo apenas dois LPs na praça – como se dizia antigamente.

Chegaram em dois Opalas amarelos (naquele tempo os carros ainda não eram todos prata). Amarelos, muito novos e empoeirados. Vinham de Ilha Solteira ou Pereira Barreto, pela estrada de Palmeira do Oeste, coitados. Toquinho dirigia o carro da frente tendo o poeta no banco do carona. O Trio Mocotó viajava no outro Opala. Toquinho baixou o vidro para perguntar onde ficava o hotel.

Deonel Rosa Júnior, nosso diplomata, se apresentou e disse que eles eram aguardados na casa de um médico da cidade. Toquinho consultou Vinícius e disse a Deonel que não, que eles preferiam ficar em um hotel, descansando um pouco. Deonel insistiu que na casa do médico não haveria incômodo nem tietagem, e acabou convencendo a ambos dizendo duas ou três palavras sobre o padrão dos nossos hotéis. Esse fator era tão determinante que naquela noite, depois do show eles preferiram ir dormir em Votuporanga. (Dez anos depois, quando Toquinho retornou a Jales com Francis Hime e Maria Creuza, eles ficaram hospedados na casa de um promotor de justiça porque nossos hotéis continuavam os mesmos).

Então, subiram todos para a residência do doutor Eduardo Ferraz Ribeiro do Valle, na rua Dez: os Opalas novinhos e o Deonel num fusca qualquer. Eu fui atrás, a pé. Entre cinco e seis da tarde eu fiquei circulando aquela quadra, dissimuladamente, como se circulava a fonte luminosa da praça aos domingos. Queria poder ver qualquer coisa. Queria ouvir qualquer coisa, mas estavam todos lá para dentro nos seus afazeres de artista. O único que saiu por um instante foi Toquinho. Ele tinha apenas 25 anos de idade, mas já sabia que não se deve deixar um violão no carro.

Na reportagem do Jornal de Jales constou que doutor Eduardo teria dito a Vinícius que o invejava, pois ele (Vinícius) levava a vida como um verdadeiro poeta. Não sei se a frase é exatamente essa, mas entendi que o que se invejava em Vinícius era aquele copo na mão, aquele cabelo comprido, sua jovem e bela mulher, sua boemia sem fim, enfim, sua liberdade sem fronteiras. Se eu tivesse guardado a reportagem, poderia agora citar a frase tal como foi publicada; não teria dúvidas quanto a presença da cantora Marília Medalha e, afinal, se aquele era o ano de 1971 ou 1972 d.C. (depois da Copa do México).

O Cine Jales ficou completamente lotado. O preço do ingresso devia ser razoável, pois eu não precisei “vazar” pelo duto de circulação de ar do pullman, depois de escalar o telhado do guichê do Expresso São Paulo, como tinha que fazer para ver os filmes do Giuliano Gema impróprios para menores de 14 anos.

Toquinho abriu o show como um número instrumental. Em seguida, tocou acompanhado pelo Trio Mocotó. Vinícius só entrou depois, triunfal, com o copo de whisky na mão, sambando miudinho. Durante o show, ele matou um litro de Old Parr com bastante gelo. Do repertório daquela noite, lembro que cantaram Tarde em Itapoã, Testamento, Gente Humilde, Na tonga da mironga do kabuletê, Samba de Orly e Valsinha, que Vinícius queria que se chamasse Valsa Hippie, mas ficou apenas Valsinha por insistência do autor da letra, Chico Buarque, ainda muito jovem, mas com sabedoria e autoridade para discordar do poeta, trinta anos mais velho do que ele.

Vinícius nos revelava a situação em que aquelas músicas tinham sido feitas, contava histórias sobre seus amigos e parceiros, falava sobre a vida (a vida é pra valer/a vida é pra levar). Tudo soava engraçado e inteligente para um menino de 13 anos que naquela noite voltou do Cine Jales para casa querendo aprender a tocar violão.

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