PASCHOALINO S. AZORDS

Paschoalino S. Azords é o pseudônimo de um amigo jalesense, que viveu sua infância e adolescência por aqui, e, atualmente, mora em outra cidade e escreve para o jornal semanal Debate, de Santa Cruz do Rio Pardo. Muitas das crônicas do Paschoalino lembram sua infância em Jales. A dessa semana, “Esquinas Perdidas”, começa falando de Santa Cruz do Rio Pardo e Ourinhos, mas, a partir do terceiro parágrafo, é sobre Jales que ele escreve. Leiam a crônica do Paschoalino, clicando no aí no

Esquinas Perdidas

 (Paschoalino S. Azords)

O santacruzense deve se perguntar, como eu, o que acontece com certas esquinas da nossa cidade? O cruzamento da Avenida Tiradentes com a rua do meio, por exemplo. Esquina vocacionada para o mercado financeiro, onde, num passado recente, três agências bancárias se entreolhavam, cansadas de comemorar um lucro recorde a cada seis meses. A pergunta é simples, nada a ver com a equação do lucro semestral: por que a sorte não sorri também para aquele quarto canto da esquina? Ali onde um hotel demolido progrediu para terreno baldio, e, em seguida, foi promovido a ponto de raizeiros e muambeiros. Hoje, a preciosa data estacionou na condição de garagem a céu aberto. Poxa, ainda que o brasileiro seja louco por carro, a garagem não há de ser um fim! Nem em Santa Cruz do Rio Pardo, nem aqui, nem em Sarutaiá. 

A cidade que não tem o seu ponto morto que atire a primeira pedra. Num ato solitário e confessional, o leitor poderá preencher este espaço reticente com a área perdida que ajuda a denegrir o centro da sua cidade. O ourinhense, por exemplo, pode começar por aquele terreno ao lado do Bradesco, de cara para a Praça Melo Peixoto. (Repare como as referências, no tempo presente, são sempre um banco. No passado, eram as igrejas).

O buraco negro da minha cidade era um terreno plano, de esquina, em frente à estação rodoviária. De tão central, esse quarteirão foi o escolhido para primeiro receber e experimentar o asfalto, quando a benfeitoria chegou às nossas ruas descalças. Além da velha rodoviária, gravitavam à sua volta, pela ordem e em direção ao Sul: o ponto de charrete, a igrejinha do Bom Jesus e o nosso 1º Grupo Escolar. À sua esquerda, na Rua Oito, ficavam os bares que dão onde pára ônibus e o imponente prédio do cinema. À direita, ainda na Oito, estava a selaria do Pêgolo, o fórum e o hotel que, por pioneiro, levava o nome do lugar escrito na fachada. Entrando pela perpendicular Rua Nove, a Livraria Mariza, em frente ao único prédio de dois pavimentos onde embaixo funcionava uma casa bancária e, no primeiro andar, a Rádio Cultura. Ao lado, a padaria dos Bernini, onde os padrinhos dos noivos pagavam umas cervejas mornas para os convidados adultos, e “maçãs” gasosas para a molecada.

Por sua localização privilegiada, aquela esquina era a preferida dos propagandistas e companhias de atrações que, como os padres, corriam o trecho. Na praça ao lado, onde ficava a igrejinha e de resto vazia, armavam-se os circos e os parques de diversão que precisavam de mais espaço para se esparramar. Mas, quando era uma atração desgarrada, a esquina convinha melhor.

O ônibus da mulher aranha ficou ali estacionado por mais de uma semana. O porteiro do espetáculo (que dirigia o ônibus e devia ser o marido da mulher aranha, pois não havia mais ninguém na comitiva) resistiu ao olhar pidão dos moleques que não tinham dinheiro para o ingresso. “Quem trouxer um vidro com 200 moscas verdes pra ela comer, entra sem pagar”. Quando o meu vidro estava pela metade, o ônibus não amanheceu no lugar. Ali se armava a tenda do faquir, o trailer do fantástico Sérgio – o mágico, o museu de cera com a cabeça de Lampião, o caminhão das aberrações vivas da natureza, o ringue da Mulher Jamanta, um serpentário itinerante, a barraca da moça que se transformava em gorila por ter batido na própria mãe, a mesinha do empresário do ciclista que iria pedalar uma semana pelo jardim da rodoviária, sem parar pra comer e nem cagar, etc, etc.

Mas o que mais aparecia era propagandista vendendo tudo o que homens e mulheres precisavam comprar para ser feliz. Os produtos destinados a facilitar a vida da dona de casa não faziam tanto sucesso. Fatiadores, amoladores, removedores de manchas e outros embustes destinados ao fundo da gaveta do guarda comida – onde ninguém mais ia procurar. Os remédios naturais tinham mais aceitação. “Se um dia as plantas não curarem qualquer doença, sabe o que acontece, conterrâneo?”. E, diante do silêncio dos curiosos, pregava o mascate: “A água do mar vira gasolina e o mundo inteiro pega fogo”.

O padre João ensinou que aqueles artistas se chamavam camelôs. O padre não perdia um, mas nunca o vi comprar nada. Acho que só queria apurar a técnica, de graça na rodinha.

As vantagens anunciadas pelos propagandistas me interessavam menos do que as novidades que eles, depois de muita história, tiravam da mala. Eu ainda não tinha idade para dar o devido valor às pílulas para enxaqueca que regulavam o ciclo, sossegavam as varizes e refrescavam as hemorróidas da patroa; nem ao tônico rejuvenescedor; à garrafada de plantas da Amazônia que depurava o sangue, limpava os intestinos de toda sorte de parasitas e ainda aumentava o apetite; à pomadinha feita da banha do peixe elétrico que acabava com a caspa, o cheiro forte debaixo do braço, as micoses da virilha, a frieira dos dedos do pé e, se inalada ou friccionada nas costas, curava bronquite, asma e rouquidão. Eu queria era ver o peixe elétrico que o propagandista exibia de hora em hora antes de reiniciar o pregão.

O peixe viajava num caixote com meio metro de água. Quando fora aprisionado nas águas emendadas do Amazonas, certamente cabia com folga na caixa, mas, como insistisse em crescer naquela ida sem fim e sem volta, o pobre animal precisava dobrar o rabo para caber n’ água. Com dois fios presos a uma varinha, o propagandista fazia acender uma pequena lâmpada elétrica ao tocar as extremidades da gigantesca enguia. Em seguida, perguntava se alguém da platéia gostaria de experimentar uma descarga do peixe elétrico do Amazonas (o maior rio do universo concebido por Deus), santo remédio para curar a gagueira e despertar o coração.

E a peleja do lagarto teiú com a cobra jibóia. E a dança do fogo dos escorpiões amarelos trazidos de Barreiras, na Bahia. E o comedor de Gillette. E o Museu Histórico e Pedagógico dos Instrumentos de Tortura da Idade Média ao III Reich. E a sedutora partner do propagandista cego que anunciava a última novidade no combate à diarréia, gases e intoxicações alimentares: uma pastilha de carvão vegetal, de aparência suspeita, o negativo da hóstia sagrada que comíamos de graça aos domingos na missa. “A pessoa que sofre de prisão de ventre é um infeliz, um irresponsável, que ora faz aquilo que não quer, ora deixa de fazer o que devia”, pregava o cego para arrematar com uma citação bíblica menos laxativa: “Daniel cantou na fornalha ardente – Tudo o que germina na terra (o purgativo comprimido de carvão, no caso), bendizei o Senhor”.

O leitor talvez não entenda como alguém pode se lembrar dessas coisas inúteis nos nossos dias. Simples: na esquina da Rua Oito com a Nove, naquele terreno vazio em frente à rodoviária, também ficava o meu ponto de engraxate. Está explicado porque eu ganhava tão pouco engraxando sapato – só minha mãe não percebia.

11 comentários

  • Quim Zé

    O Paschoalino escreve bem pra caramba!!!

  • Além disso, o sacana tem uma ótima memória. E ele só escreve depois de tomar umas quatro ou cinco latinhas. Será que cerveja ativa a memória? Aliás, o Veríssimo escreveu um texto para o Estadão, de ontem, onde ele dizia que o Moacyr Scliar era o único escritor que não bebia. Segundo o Veríssimo, o Scliar era a vergonha da classe literária. De brincadeira, é claro!

  • dalua

    O escritor lembra muito bem da cidade. O relato sobre o peixe elétrico me fez lembrar. Ele conta certinho. No espaço entre a Igreja e a Escola (onde estudei),jogamos futebol, empinamos pipas (papagaios), jogamos bolinha gude e outros. Provavel que ele tenha participado porque os engraxates e os sorveteiros se reuniam naquele espaço. Muito bom rememorar. abraços.

  • dalua

    Complemento…..

    A caixa d’água (reservatório) de Jales é formato de um cálice porque Dr. Rollemberg pensou na necessidade de brindar as pessoas que passavam por Jales (ferrovia)que era o meio de transporte. Poucos sabem disso. O formato é este devido a intenção. Consta da monografia História do Saneamento de Jales.

  • Veja você, Dalua, que eu morei quase vinte anos ali ao lado da caixa d’água e não sabia que o formato se devia ao ex-prefeito e ex-deputado Rollemberg. Quando eu cheguei ali na Vila Maria, em 1962, ela estava sendo construída. Quanto ao Paschoalino, tenho certeza que você o conhece. Ele era goleiro (por sinal, um grande frangueiro!) e você, que nos tempos de moleque atuou em vários gramados, deve ter feito algum gol nele.

    • dalua

      A primeira ligação água em Jales foi em 1963 no Bairro IV Centenario. Na residencia, se não estou enganado, do
      Jovino Carroceiro. Tambem esta na monografia Historia Saneamento de Jales que escrevi para o curso especialização em Gestão Ambiental – UFSCAR. Os primeiros poos foram na administração Euphly Jalles, mas não puderam ser utilizados devido a problemas na perfuração. Esta do reservatório ser tipo cálice (dificil manutenção)não era de conhecimento público. Sei porque em 1965, Dr. Roberto fêz tal observação. Serve para abastecer as partes altas da cidade.
      VVocê não sabe,mas fui campeão municipal pelo Cafelense. Mas não tinha sua habilidade. Do seu nível ê só o Edson e o Tadeu. Abração.

  • Genésio

    Na esquína lembrada pelo Pascoalino, na transição dos anos 40 para 50, houve também um comércio inusitado, e o cruzamento da Nove com a Oito chamava-se, pelo menos aos sábados, de “Esquina das éguass”. Para lá levavam muares, equinos e depois tudo que tinha quatro patas. Os ciganos nadavam de braçada. Quase tudo à base da troca; dinheiro só para as voltas. Com a vinda do ponto de charretes, depois rodoviária o comércio foi esfriando.
    Cardosinho, as crônicas do AZORDS são semanais, procure encaixar mais umas e outras.
    Abraço

  • Com certeza, seo Genésio, vamos postar mais crônicas do Paschoalino. Tenho várias que ele me manda semanalmente e já pedi autorização para publicar. Mas tem algumas que eu não posso publicar, porque as personagens estão por aí. A memória do Paschoalino é realmente um prodígio.

  • Vany Moura

    AH! Bons tempos, rememorar tudo isso, fui lendo e a cada palavra era como se um filminho fosse se desenrolando à minha frente,morava ali na sete ao lado quase da venda do seu Chico, lembra?…Adorei a
    crônica, acho que serviu de uma retomada da nossa infancia, boas lembranças que com a correria do dia a dia, fica camufladinha em nosso interior, mas ao primeiro sinal ela aflora viva e vibrante, isso amigos significa que tivemos uma bela infância, boas lembranças, de gente feliz!!

  • dalua

    Vamos relembrar algumas outras. Cidade contra cidade Jales x Rio Claro, com TV na Avenida. Finalda Copa de 70. Dr. Edilio Ridolfo abriu sua casa porque existiam poucos aparelhos. Mais de 30 pessoas na sala. Como eu era o menor de todos, sentei ao lado dele na poltrona de um lugar, ajudando no café. Que bondade de um homem, também da sua esposa. Nos dias atuais algo muito remoto de acontecer. Os jogos na quadra municipal. O show Canario e Passarinho contra um conjunto, se não estou enganado os Tremendos (iê, iê x caipiras).

  • antonio inacio da costa

    lendo o blog do cardozinho tao distante de jales chorei de saudades

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